Legado Cultural
Que sucesso se pode esperar da mera repetição da tradição? Se a tradição fosse o único terreno em que pudessem florescer as potencialidades humanas então estas seriam perfeitamente banais.
A necessidade de “desconstruir” a tradição é tarefa do pensamento crítico dos homens.
Esta necessidade já foi identificada por anteriores políticas culturais, embora mal acompanhadas pelos agentes públicos e privados ─ pois a cultura está nos homens, e não nos edifícios.
A herança deixada por António Ferro e pelo seu Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (ex- Secretariado de Propaganda Nacional), ainda hoje subsiste, sendo as romarias, arraiais e feiras a sua expressão mais genuína e nos actuais cineteatros, teatros municipais, auditórios, etc., encontramos a prossecução dessa veracidade.
Tal realidade não seria má em si, se tivesse sido acompanhada de uma política cultural assente na formação integral do homem e no seu desenvolvimento intelectual, isto é, projectada no sentido de descobrir novos saberes e técnicas.
A noção de cultura, normalmente designada de cultura popular, é amiúde usada como instrumento integrador daqueles que não têm acesso a outras manifestações “artísticas”.
A frase mais comum entre os menos interessados, e justificativa da falta de critica, é a famigerada expressão “os gostos não se discutem”.
É importante que o Estado se liberte do conceito de “gosto”, criado a partir de uma propaganda política, em direcção a uma exigência critica e à redefinição daquilo que é, verdadeiramente, objecto cultural e artístico.
Qualquer fragmento local não é necessariamente adequado para objecto cultural. Por outro lado, sendo o entretenimento uma parcela da cultura, não pode ser por si só um fim, mas antes um meio para uma difusão de saberes mais eficaz. Em suma, é preciso integrar uma noção estética ao “gosto”.
A arte é diferenciada da esfera do gosto pela estética dos afectos.
O objectivo não é só a beleza, mas sim “conhecimento no qual se contemplam as ideias, que são a objectividade imediata e adequada à coisa em si” (Schopenhauer); importa pois apreender o conhecimento da arte segundo a sua necessidade interna e no seu contexto histórico.
Para um público esclarecido, “não valem apenas os juízos determinantes, típicos das ciências mecânicas, mas antes os juízos refletentes.” (Kant)
Na qualidade de entretenimento, a música tem sido a mais sacrificada das artes. Em todo o interior do país, é cada vez mais difícil encontrar uma programação musical coerente, sendo quase sempre preferidas a grande quantidade e a função decorativa, o que lembra Hanslick quando diz que ninguém prova a essência do vinho quando se embebeda!
É preciso qualidade nas programações, objectivos bem defendidos e agentes culturais (privados e públicos) responsáveis.
Em suma, o conceito e a realidade objecto cultural são confusos para os agentes e gestores culturais, pois, estes nunca estiveram enquadrados com o problema. Penso que na maior parte das vezes é mais por ignorância, resultante de factores históricos, do que por insipiência dos próprios.
Por desígnio, de escolha quase sempre política, os responsáveis pela erudição dos portugueses têm formação noutras áreas, o que reverte num país desvalido e pesaroso, e reflecte, geralmente, a falta de confiança dos meus colegas de ofício, ausentando-se, cada vez mais, do interior para o litoral, e do litoral para estrangeiro.
Assim, é preciso que a politica cultural do país, e em especial do interior, restitua ao conceito cultura o seu pleno sentido, a fim de potenciar os seus recursos no futuro.
As estruturas físicas já existem, falta a indispensável audácia humana.
Jornal Local
2005